A ideologia do envelhecimento bem-sucedido

A primeira questão colocada neste artigo problematiza a forma como o envelhecimento está sendo apresentado recentemente, seja pelas antigas ou novas ciências que surgem interessadas na produção de conhecimentos específicos sobre a velhice, seja pela mídia e sua antiga preocupação em produzir e transmitir a imagem de um modo de vida ideal. A forma como a tratamos, o lugar que a destinamos e os discursos sobre ela transformaram a velhice em um campo atravessado por diversas forças, saberes e práticas contemporâneas que determinam certo modo de envelhecer.

Para dar conta deste novo imperativo, assistimos atualmente a uma socialização progressiva da gestão da velhice (Debert, 2004), que a fez passar de uma questão própria da esfera privada e familiar a um conjunto de orientações e intervenções por parte do Estado, executadas por parte de organizações públicas e privadas e legitimada por saberes produzidos em campos específicos – a geriatria e a gerontologia. Como gestores especializados no envelhecimento, geriatras e gerontólogos estudam o envelhecimento como um problema social, justificado pelo aumento demográfico de idosos e sua inevitável consequência para o sistema de saúde e o da previdência social.

Para Gaglietti e Barbosa (2007), o primeiro questionamento a ser feito refere-se às representações preestabelecidas dos objetos destes estudos – o idoso e a velhice, as quais induzem a uma determinada maneira de apreendê-los, defini-los e concebê-los. O segundo questionamento refere-se aos discursos e às práticas que são instituídos com a finalidade de solucionar este problema, sem questionar de que forma estes produziram e legitimaram a ideia do envelhecimento e da condição da velhice como um problema natural.

Essa racionalidade marca a forma predominante como a velhice é tratada desde o século XIX – um processo contínuo de perdas cognitivas, físicas, motoras e sociais, caracterizado pela passagem da independência à dependência, da produtividade à improdutividade, da criação à degeneração, do cuidado ao abandono. A industrialização foi o motor destas transformações e rupturas, ao reposicionar as relações entre as gerações no interior da família, ao introduzir o controle do tempo e dos corpos nos ritmos cotidianos e ao ancorar a vida na primazia da produtividade econômica que subordina os indivíduos à racionalização da ordem social. A partir desta lógica, o século XX presenciou, por sua vez, várias transformações ocorridas no campo da previdência social, começando com a reorganização do sistema de aposentadorias, passando pela criação de novas formas de assistência aos aposentados (lazer e serviços especializados) e terminando pela revisão da idade cronológica própria à aposentadoria, em faixas etárias anteriores à esperada (pré-aposentadoria). Nestas transformações existiu uma preocupação em redefinir o mercado de trabalho e o problema do desemprego, abrindo vagas para os mais jovens e tentando minimizar a importância do trabalho na vida dos mais velhos, mesmo que para isso tivessem que abdicar do padrão de vida que tinham anteriormente. A colocação da velhice como um problema a ser resolvido com a criação de profissionais, serviços e políticas especializadas, oculta a distribuição de poder e de privilégios entre as classes e entre as gerações, oculta também as lutas econômicas que determinam os “economicamente ativos” e os “incapacitados a produzir” (Gaglietti & Barbosa, 2007; Debert, 2004).

O interesse por esta população pode ser evidenciado pelo aumento do número de associações de aposentados, grupos de convivência para a terceira idade, instituições asilares e pelas representações que as questões do envelhecimento recebem das políticas públicas. De acordo com Tótora (2006:28):

A ciência e o Estado, com sua promessa de bem-estar, segurança e felicidade, não somente extraem das forças sua potência de agir, como também proclamam um outro mundo, distinto da história e da vida. Trata-se, nesse caso, de uma postura moral fundada em valores superiores à vida, como o bem ou o dever. A moral da ciência e do Estado é controlar a vida, investindo sobre os corpos, individuais ou coletivos, domesticando suas forças destrutivas e extraindo deles um saber.

Com o surgimento destes especialistas, a família passa a delegar aos profissionais uma parte importante do trabalho de atenção e assistência, comprometendo, ao mesmo tempo, o trabalho de manutenção das relações e dos afetos dentro do grupo familiar. Para amenizar a culpa dos filhos em relação a redução do custo moral ou afetivo no cuidado dos pais que se encontram velhos, as instituições asilares são convertidas em casas de repouso que prometem um atendimento especializado e competente e soluções adequadas ao tratamento dos velhos. Para Gaglietti e Barbosa (2007:145), “as novas formas de tratamento da velhice operam não somente na gestão dos ‘velhos’, mas também no sentimento de culpa, proveniente do custo “psicológico” do afastamento do seio familiar dos pais que se tornaram idosos”.

Aos idosos que ainda se mantêm independentes do cuidado da família, esta nova gestão da velhice tem como alvo transformá-la em uma responsabilidade individual. Considerada por Debert (2004) como uma forma de reprivatização do envelhecimento, os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade pelo seu envelhecimento e, consequentemente, pela sua saúde, pela sua aparência e pelo seu isolamento. De acordo com a autora (Debert, 2004:35):

[…] se alguém não é ativo, não está envolvido em programas de rejuvenescimento, se vive a velhice no isolamento e na doença é porque não teve o comportamento adequado ao longo da vida, recusou a adoção de formas de consumo e estilos de vida adequados e, portanto, não merece nenhum tipo de solidariedade.

O lazer aparece neste contexto seguindo esta mesma ideologia e racionalidade – a ocupação do tempo livre – como sendo acessível a todos e como se todos pudessem usufruir de atividades de lazer, principalmente os idosos possuidores de grande quantidade de tempo livre. Entretanto, este ideal de vida de lazer vem acompanhado de uma visão funcionalista que procura encobrir os problemas sociais e econômicos que atingem a população idosa. No Brasil, quem tem acesso a esse tipo de serviço é quem tem maior disponibilidade de renda e, por isso, é consumidor das tecnologias de rejuvenescimento e dos serviços de programação da vida de modo que a beleza e dignidade possam ser garantidas em idades avançadas.

O alvo destas novas tecnologias de rejuvenescimento é o corpo, o avanço das investigações científicas consolida a compreensão do envelhecimento como resultado de um longo processo, cuja premissa baseia-se numa vida moderada, capaz de evitar o excesso e a falta. O corpo é escravizado em função de estilos de vida que tenham a finalidade de prolongar infinitamente a juventude, movidos pela ambição vaidosa da estética corporal. Trata-se de um processo coerente com a lógica da secularização da alma e a dessacralização do corpo, do qual se origina uma superficialidade e um vazio culturais que, aliados a uma sociedade de consumo e interesses mercadológicos, atingem os cuidados dispensados à conservação de uma vida saudável e feliz (Dalbosco, 2006).

Essas abordagens revelam o quanto os hábitos corporais são modelados culturalmente e revelam também o risco de reduzir o corpo a uma única dimensão: o corpo útil, produtivo e jovem, por meio de imposições que determinam até mesmo suas necessidades e desejos. Para Debert (2004:228):

Engolidos pelas concepções auto preservacionistas do corpo, os gerontólogos têm agora, como tarefa, encorajar os indivíduos a adotarem estratégias instrumentais para combater a deterioração e a decadência. Afinados com a burocracia estatal, que procura reduzir os custos com a saúde educando o público a evitar a negligência corporal, os gerontólogos abrem também novos mercados para a indústria do rejuvenescimento.

Encontramo-nos, desta forma, levados por práticas e modos de condutas regidas por valores funcionalistas, pragmatistas, racionalistas e capitalistas. Produzir, ser ativo, ocupar o tempo, ser saudável, rejuvenescer, inscrevem-se num campo de saber especializado, com experts encarregados de definir não apenas quais são as necessidades dos idosos e os problemas que eles enfrentam na atualidade, mas também encarregados de produzir novas necessidades e, portanto, novos serviços que atendam a essas necessidades. De acordo com Tótora (2006:36-37):

Em uma cultura que valoriza os excessos de prazeres e o culto da felicidade como ausência de sofrimentos, doença e dor, ser velho é privação. […] Pode-se afirmar que a distribuição cronológica da existência dos indivíduos foi concentrada em um único período que se deseja congelar: o da permanência eterna na juventude.

Para Debert (2004), mesmo quando surge uma crítica a este discurso gerontológico na intenção de “dar voz aos velhos”, tais palavras de ordem podem ser usadas tanto para denunciar as tecnologias de saber e poder que regulam, classificam, dividem e dominam os sujeitos, quanto para transformar a liberdade de escolha em uma nova obrigação de todo cidadão. Desta forma, geriatras e gerontólogos se transformam em participantes ativos de um novo tipo de ‘conspiração do silêncio’.

Esta “conspiração do silêncio” é denunciada por Simone de Beauvoir em seu livro “A velhice” (1990). A busca de um consumo de saúde, felicidade, prazer, tranquilidade traz por detrás um segredo vergonhoso, o qual deve ser evitado de se falar – a velhice tão indesejada para muitos. Para Tótora (2006:27-28):

O envelhecimento, por um lado, é alvo de dispositivos de poder que investem sobre o corpo, individualizando o envelhecer no segmento idoso e submetendo-o a experimentos médicos de contensão da doença, e, por outro, produz uma variedade de dispositivos de intervenção na própria vida enquanto fenômeno coletivo. Tratar o envelhecimento como doença, e esta como um mal, desencadeia uma aversão a se tornar velho. Velho é sempre o outro.

Outra forma de problematizar esta questão no campo político é o que tem sido proposto pela Lei nº 12.213 que institui a criação do Fundo Nacional do Idoso e suas instâncias estaduais e municipais. A este Fundo seriam destinados os recursos de pessoas físicas ou jurídicas, deduzidos do Imposto de Renda, com a finalidade de financiar os programas e ações relativas à política de assistência ao idoso. De acordo com Rozendo e Justo (2012), a primeira preocupação refere-se à destinação destes recursos sem que haja a participação efetiva dos idosos beneficiários na decisão dos serviços e programas que receberão o investimento. Outra constatação dos autores é a disposição do Estado em compartilhar esta arrecadação fiscal com a iniciativa privada, o que pode se caracterizar, como hipótese, uma política de redução do poder público calcada na prática de terceirização dos serviços. Novamente, faz-se presente o silenciamento dos idosos e o direcionamento da assistência a estes por aqueles que comandam a gestão da velhice: o poder público, a iniciativa privada e os Conselhos dos Idosos. Os autores alertam sobre a importância dos idosos se fortalecerem no plano político e no exercício efetivo da cidadania, ocupando os canais de participação que lhes são assegurados e a gestão dos recursos e serviços que lhe são oferecidos.

Entendemos, contudo, que o envelhecimento, enquanto fenômeno social em toda a sua complexidade, deve ser compreendido como resultante de um conjunto de determinantes subjetivos, biológicos, econômicos, sociais, políticos e ideológicos que ocorrem na correlação de forças e contradições engendradas pelo modo de produção atual. Assim, apontar os jogos de forças e relações de poder que circundam as questões do envelhecimento no contemporâneo, e que têm por finalidade contribuir para a desnaturalização do envelhecimento sob a imposição de um novo ator social e de uma nova imagem da velhice, é denunciar as práticas de poder e formações de saber em torno destas questões e que legitimam esta conspiração silenciosa. Segundo Tótora (2006:29):

Não se trata de tomar os valores como dados, mas sim de interrogá-los. Que relação de forças os produziu? Qual o sentido dessas forças? Qual o seu efeito? Tais questões exigem que se abandone uma postura reativa, que aceita os valores estabelecidos e os justifica. Trata-se, pois, de problematizá-los.

Problematizar a forma como estamos tratando os idosos e o processo de envelhecimento implica em reconsiderar o lugar que destinamos a cada fase geração ou fase do desenvolvimento. Neste sentido, reconhecemos a velhice como lugar privilegiado de testemunho e de experiência narrativa da história de toda uma geração.

 

pela Psicopedagoga Emília Furlan Leite

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